Júlia Barata publica BD sobre “pequenas contradições e complexidades” das famílias
As «pequenas contradições e complexidades» dos vínculos familiares são abordadas, «sem juízos de valor» e com uma perspetiva autobiográfica, numa banda desenhada que Júlia Barata, autora portuguesa, natural de Coimbra, acaba de publicar em Portugal. “Família”, que tem o selo da editora Chili com Carne, sai no mercado nacional depois de já ter sido publicado na Argentina, onde Júlia Barata vive há mais de uma década, assim como também Espanha.
Numa passagem por Portugal, para o lançamento do livro, uma exposição e uma oficina sobre relatos autobiográficos, em Lisboa, Júlia Barata contou à Lusa que “Família” pode ser entendido como uma continuação da BD “Gravidez” (2017), na qual fala sobre a maternidade e a mudança para outro continente. Os títulos podem parecer autoexplicativos e literais sobre a narrativa desenhada, mas Júlia Barata deposita nelas questões mais transversais sobre papéis sociais, sobre ser mulher, relacionamentos, depressão e desejo, numa abordagem punk, feminista e livre.
“Há assuntos que gostava de falar e sobre os quais tomei como base eventos da minha vida. Mas na criação do objeto é preciso distinguir depois muito bem o que vai ou não vai ficar [na narrativa]. O que é a verdade é um bocado difícil de definir. É a minha interpretação de certos eventos, com reajuste de personagens, de cronologias”, explicou. Em “Família” há um casal e um filho a viverem na Argentina, e Júlia Barata regista episódios da vida conjugal, reuniões e saídas à noite com amigos, os compromissos laborais, os passeios e as férias em família.
“Eu gosto dessa ideia de não haver heróis nem maus; as pequenas coisas da vida são mais complexas de trabalhar, assim como essas pequenas contradições e complexidades dos vínculos. É uma abordagem dos temas da maternidade, o papel da mulher, o trabalho. Toca os temas da saúde mental e também uma certa desconstrução da ideia do funcionamento de uma família, da ideia de que é fácil ou perfeito”, descreveu.
No livro sobressai ainda a utilização da cor vermelha e da aguarela, que lhe permite mais caminhos de exploração da estrutura da banda desenhada e da narrativa visual.
“A aguarela deu-me uma outra dimensão do onírico, do delírio, para poder criar estas manchas que dão complexidade ao desenho e são um pouco mais experimentais do que a tinta-da-china. Ajuda a refletir pensamentos, a dúvida e aquele ambiente um bocado nublado que o livro descreve”, disse.
Júlia Barata nasceu em 1981, em Coimbra, viveu no Porto, em Moçambique, nos Países Baixos e em Espanha até se fixar em Buenos Aires. Formada em Arquitetura, dedica-se sobretudo às artes visuais, e a autobiografia e a autoficção têm servido de referência para os assuntos que quer abordar em banda desenhada, nomeadamente a condição das mulheres, o relacionamento com os outros.
“Acho interessante trabalhar com estas coisas que estão nas nossas vidas e que a própria pessoa faça um diagnóstico ou reconheça certos excessos ou perceba que há coisas que não estão bem e que há uma disfuncionalidade latente. (…) Creio que vivemos num momento em que muitas mulheres passam pelo mesmo: pela maternidade, confronto disso com uma carreira, com um vínculo. Vejo muitas pessoas a passarem por ‘burnouts’ por tentarem ser tudo e fazer tudo”, admitiu.
Além de “Gravidez” e “Família”, Júlia Barata publicou “Quotidianos de luxo” (2019) e “2 histórias de amor” (2016), entre outros trabalhos feitos com coletivos e em editoras independentes.
Sempre com projetos a decorrerem em paralelo, por terem processos demorados de criação, Júlia Barata está atualmente a trabalhar no formato de entrevistas desenhadas a pessoas.
Um dos projetos, que chegou a ser um livro e tem agora um formato mais expositivo de artes visuais, baseia-se em entrevistas a pessoas que têm vidas normais, do seu “círculo de afetos”, mas que têm “mochilas de guerra, ditaduras, exílios conflitos históricos ao longo do século XX”.
Uma das entrevistas, por exemplo, teve uma sequência contínua com 15 metros de páginas desenhadas, pelo que incluiu uma experimentação que não cabe num livro.
Júlia Barata com projeto de entrevistas desenhadas sobre emigrantes portugueses na Argentina
O outro projeto de entrevistas desenhadas é sobre emigrantes portugueses de várias gerações que vivem no sul da Argentina, em Comodoro Rivadavia, na zona costeira.
Júlia Barata contou que fez uma oficina há dois anos em Comodoro Rivadaia, a convite do Instituto Camões, e conheceu histórias “muito interessantes” de emigrantes portugueses: "Aquilo ficou-me a dar voltas à cabeça, havia muita emigração do Algarve, de São Brás de Alportel. E quis saber como é que aquele sítio inóspito foi escolhido, como é que as pessoas vivem”.
Há ainda o projeto de adaptação do livro “Caderno de Memórias Coloniais”, com a escritora Isabela Figueiredo, mas que “exige tempo e disponibilidade”.
“O nicho da BD e da novela gráfica, e creio que muitas vezes da literatura, acaba por ficar entregue aos meios que a pessoa dispõe para construir o seu processo criativo. Tenho concorrido a fundos para a criação, porque não há apoios no mercado de trabalho”, mas sem sucesso, lamentou.
Porque “o processo de fazer os livros não é financiado, a pessoa dedica as horas vagas, a madrugada. E depois, sim, há um mercado, mas não reflete as horas que isto exige”.
Júlia Barata manter-se-á em Buenos Aires apesar de a vida na Argentina "estar péssima", depois da eleição de Javier Milei para a presidência do país, disse.
“Foi um ano dos mais violentos que vivi politicamente na Argentina. Estamos a viver um governo que tem, além de muitas coisas com as quais não concordo, uma guerra pessoal com a Cultura. Tudo o que tenha a ver com a Cultura é considerado a eliminar. É uma guerra objetiva, é fechar todos os apoios, as portas que se possam abrir aos campos de Cultura”, criticou.