
Censura sobre legendas de filmes no Estado Novo centrada no sexo e desobediência
Uma tese de doutoramento da Universidade de Coimbra debruçou-se sobre a censura na legendagem de filmes durante o Estado Novo e concluiu que os censores visavam maioritariamente temas relacionados com a sexualidade e a desobediência.
A investigadora Katrin Pieper, com experiência na área da tradução, analisou 13 filmes alvo de censura durante o Estado Novo, abrangendo obras ao longo de toda a ditadura e de diferentes géneros, e procurou perceber como é que as legendas de filmes eram censuradas e quais os temas que eram objeto de maior ou menor manipulação e cortes, disse à agência Lusa a autora da tese, defendida no final de 2024.
Na análise feita a 13 filmes, a investigadora identificou sobretudo manipulações e cortes centrados na categoria de desobediência e poder (86 casos relacionados com autoridade, resistência, solidariedade e liberdade de expressão) e sexualidade (76 relacionados com eroticismo, nudez, adultério, prostituição e homossexualidade).
Questões como ofensas à Igreja, questões políticas, crime ou papéis de género também foram alvo de manipulação e cortes nos filmes analisados.
Segundo Katrin Pieper, era mais comum a proposta de cortes do que a sugestão de reformulação de palavras usadas na legendagem.
Por vezes, eram suprimidas as legendas, mas a cena visual mantinha-se. Outras vezes, uma cena inteira poderia ser cortada, alterando por completo a própria narrativa do filme.
Das obras analisadas, há um filme que se destaca por ter sido o mais censurado, “This Land is Mine”, de Jean Renoir
Das obras analisadas, há um filme que se destaca por ter sido o mais censurado, “This Land is Mine”, de Jean Renoir, que conta a história de um professor algures na Europa ocupada pelos nazis, que acaba a defender a resistência.
Num julgamento, acaba absolvido, volta à sua escola e fala aos alunos de direitos humanos, antes de ser capturado por soldados alemães que o matam.
Na versão censurada em Portugal, o filme acaba com a libertação após o julgamento, tornando o filme “completamente diferente”, notou.
Já em “Sleeper”, de Woody Allen, que foi alvo de processo censório antes do 25 de Abril, mas exibido já depois da revolução, a censura encontra-se, sobretudo, na manipulação das legendas, com um total de 40 manipulações.
“Eu quero ter sexo contigo” passou a “quero brincar contigo”, “fazer amor” transformou-se em “pequena aventura”, numa censura que procurava cortar não apenas cenas sexuais como qualquer forma de intimidade.
Além dessas alusões, há ainda uma passagem no filme de Woody Allen em que uma das personagens mostra o seu fascínio pelo líder da resistência, que acreditava que iria começar “um governo marxista composto por trabalhadores e pelas classes oprimidas”.
Na versão traduzida, a personagem dizia que o líder tinha “ideias absolutamente extravagantes”.
A censura e autocensura estavam presentes em vários momentos do processo até à exibição do filme
Já “Pope Joan”, de 1972, sofreu cortes pela forma como retrata a Igreja, onde se mostra que o celibato não é levado a sério – a determinado momento, a tradução de “mulher do Papa” passa para “avó do Papa”.
De acordo com a investigadora, a censura e autocensura estavam presentes em vários momentos do processo até à exibição do filme, começando pela própria escolha que as distribuidoras faziam dos filmes.
“Essa é a primeira fase de censura ou de autocensura, porque obviamente não iam importar filmes que sabiam perfeitamente que não iam passar”, disse.
Posteriormente, o filme era entregue ao Secretariado Nacional de Informação (SNI), acompanhado de legendas em papel, com cada linha de texto a ser numerada.
“O filme era visto por um par de censores, que tomava uma decisão – proibir, aprovar com cortes ou aprovar sem cortes. Se os dois censores não chegassem a um consenso, outro par iria ver o filme, até haver uma decisão consensual”, disse.
Houve filmes que acabavam bloqueados logo numa espécie de processo prévio e outros que eram ressubmetidos anos mais tarde, na esperança de poderem passar.
Segundo Katrin Pieper, esta é uma das primeiras investigações exaustivas sobre a manipulação ideológica das legendas em Portugal, durante o Estado Novo.