As brechas na torre sineira do antigo Mosteiro de Santa Cruz, bem visíveis, vinham dando sinais claros da degradação do monumento, cuja peculiar silhueta se destacava e valorizava a zona central da cidade. Nas páginas do Diário de Coimbra, desde que foi fundado em 1930, sucediam-se os alertas às autoridades para a urgência de acudir à torre, antes que fosse tarde para evitar a derrocada. Mas em vão. A 10 de junho de 1933, um incêndio num palhei¬ro que ali existia, com o combate às chamas a requerer grandes quantidades de água, e as chuvas torrenciais da última semana de 1934 acabaram por minar de tal forma a construção que subitamente, na manhã de 2 de janeiro de 1935, um acentuado desnível gerou o alarme e acordou Coimbra para a inevitabilidade de vir a perder uma das suas joias monumentais.
Localizada na Rua Olímpio Nicolau Rui Fernandes, contígua de um lado ao edifício que albergava a cadeia comarcã e a 2.ª esquadra da PSP, e do outro à Escola Brotero (então instalada no centro da cidade), a torre dos sinos ameaçava «vir abaixo de um momento para o outro», apressando-se a polícia a vedar a zona aos muitos curiosos que ali acorreram e a fechar ao trânsito a movimentada e principal artéria de ligação entre a Alta e a Baixa.
«O monumento, que apresentava já profundas e rasgadas fendas, separou-se dos edifícios anexos, como se verifica nas brechas que se abriram entre a torre e a Escola Industrial e Comercial de Brotero e a Cadeia de Santa Cruz», constatou o jornal na edição de 3 de janeiro.
A meio da tarde o problema agravou-se. Feita uma vistoria, a PSP «ordenou a evacuação da parte da torre que há muitos anos era habitada pelo sineiro José Gomes e sua família» e comunicou ao delegado do Procurador da República a «gravidade do perigo que corria a Cadeia de Santa Cruz». Os presos foram de imediato transferidos das divisões mais próximas da torre para o lado oposto do edifício e «à noite os do sexo masculino passaram, sob escolta, para a Penitenciária, e as mulheres para o calabouço da Polícia de Investigação Criminal, no Palácio de Justiça», regressando à cadeia comarcã logo que a situação normalizou.
Nos edifícios do outro lado da rua, onde funcionavam Direção de Estradas e outros serviços do Estado, tomavam-se também precauções. Ao final da tarde deu-se ordem para o pessoal da secção de telefones dos Correios e Telégrafos, ali instalada, abandonar o serviço, deixando quase to¬da a cidade privada de comunicações telefónicas e telegráficas até à noite do dia seguinte.
A «gravidade da situação e o perigo que corriam os edifícios próximos, ocupados por particulares e por serviços públicos», motivaram à noite uma reunião de emergência no Governo Civil, de técnicos e políticos, decidindo-se proceder à demolição da torre no dia seguinte, com evacuação dos edifícios próximos de modo a «evitar, o mais possível, desastres pessoais e prejuízos materiais».
«Ontem, às 17h20, ante milhares de pessoas que a observaram de todos os pontos da ci¬dade, a Torre de Santa Cruz ruiu, completamente, cedendo aos efeitos da água, que a perdera e acabou por a deitar abai¬xo. A lenta derrocada produziu um estrépito cavo, obstruindo totalmente a Rua Olímpio Nicolau Rui Fernandes uma barreira com 15 metros de altura», sintetizou o Diário de Coimbra na primeira página do dia 4.
A torre, observou o jornal, «voltou ontem a prender a atenção da cidade inteira» e «milhares de pessoas afluíram às artérias e locais das imediações, não arredando pé, até ao momento da derrocada». Outras assistiam de pontos mais afastados, algumas «munidas de binóculos nas janelas e varandas dos prédios», «atraídas, a maior parte, pela curiosidade de um espetáculo que se lhes oferecia com tanto de inédito como de brutal, e outras como que para dizer o último adeus a um dos mais belos e raros monumentos da cidade».
«Às 14h00, um piquete de bombeiros procedia do edifício da Escola Brotero ao lançamento contínuo de água, por meio de mangueiras, para o interior da torre, no sentido de provocar a escavação dos alicerces. A breve trecho a água começava a produzir os seus efeitos, visto que as fendas iam abrindo mais, e a torre começava a separar-
-se sensivelmente do corpo que deita para a Rua de Montarroio. Às 16h55 produziu-se no interior da torre a primeira derrocada estrepitosa. Em redor, o silencio é profundo, apesar de milhares de pessoas que ficam para além dos cordões da polícia. Começam a contar-se e viver-se os minutos. Às 17h05 desmorona-se parte da parede do velho edifício da cadeia, junto à torre. A caliça cai agora continuamente. A anunciar a derrocada precipitou-se no solo toda a larga frontaria da Escola Brotero, desde a torre ao corpo central das varandas, numa extensão de quinze metros. Nuvens de pó erguem-se ao desabar das primeiras pedras, e sobem lentamente, envolvendo a torre. A multidão que se comprime na Praça 8 de Maio e se estende pela Rua Ferreira Borges, agita-se aos primeiros ruídos das pedras que caem... e nas outras artérias a agitação é também latente. Às 17h20, a torre vem abaixo», relatou o repórter do Diário de Coimbra.